Quaresma 2023

Restaurada no Concílio Vaticano II, a Quaresma atual movimenta-se precisamente nas três direções (batismal, pascal e penitencial). A perspetiva da Quaresma de 2023 (ano A) é eminentemente batismal e oferece-se como um tempo favorável à preparação do Batismo (e dos outros sacramento da iniciação cristã) ou a redescoberta da vida batismal. Daí, os Evangelhos alusivos à simbologia batismal, com predominância da água (o dom da água viva à Samaritana), da luz (cura do cego de nascença), da vida (ressurreição de Lázaro). Esta é a perspetiva dominante do ano A.

Assim, o tempo da Quaresma, com a sua dupla característica, prepara, quer os fiéis batizados, quer os catecúmenos, em ordem à celebração do mistério pascal. Enquanto os catecúmenos se encaminham para os sacramentos da iniciação cristã, tanto por meio da eleição e dos escrutínios, como pela catequese, os fiéis batizados, por sua vez, dedicando-se com mais assiduidade a escutar a Palavra de Deus e a uma oração mais intensa, e mediante a penitência, preparam-se para renovar as suas promessas batismais. Para uns e outros, a Quaresma cristã não tem sentido algum sem a Páscoa. E, do mesmo modo, seria impossível viver coerentemente a Páscoa sem a exercitação espiritual e a vivência profunda da Quaresma litúrgica.  A «nova vida» pascal não se improvisa com a celebração da grande Vigília da Ressurreição. Para empreender seriamente o caminho rumo à Páscoa e nos prepararmos para celebrar a Ressurreição do Senhor – a festa mais jubilosa e solene de todo o ano litúrgico – o que pode haver de mais adequado do que deixarmo-nos conduzir pela Palavra de Deus?

Percorramos, em síntese, as etapas do caminho da iniciação cristã, a partir dos Evangelhos dominicais, tendo em vista novos e decisivos passos no seguimento de Cristo e na doação total a Ele, segundo esta proposta.


1.º Domingo da Quaresma

Reconhece-te pecador e abre-te ao Amor divino

Renuncia ao presente envenenado do pecado.

Pelo Batismo, és um homem novo.

(Mateus 4, 1-11) Tentações de Jesus e a vitória de Cristo contra o mal: a necessidade de renúncia ao pecado e aos falsos deuses e a decisão ou opção por Cristo.

1 Então Jesus foi levado pelo espírito a subir ao deserto para ser tentado pelo diabo. 2 E tendo jejuado durante quarenta dias e quarenta noites, por fim sentiu fome. 3 E o tentador, aproximando-se, chegou e disse-lhe: “Se és filho de Deus, diz para que estas pedras se transformem em pães”. 4 Jesus, respondendo, disse: “Ficou escrito: não é com base em pão só que viverá o ser humano, mas com base em toda a palavra saída através da boca de Deus”. 5 Então o diabo leva-o à cidade santa e coloca-o sobre o pináculo do templo 6 e diz-lhe: “Se és filho de Deus, atira-te lá para baixo. Pois ficou escrito que aos seus anjos dará ordens a teu respeito e nas mãos eles te levantarão, para que não firas contra uma pedra o teu pé”. 7 Disse-lhe Jesus: “[Respondo-te] novamente: ficou escrito que não tentarás o Senhor teu Deus”. 8 Leva-o outra vez o diabo para uma montanha muito alta e mostra-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles. 9 E disse-lhe: “Dar-te-ei todas estas coisas se caíres ao chão e te prostrares diante de mim”. 10 Então lhe disse Jesus: “Vai-te, Satanás! Pois ficou escrito: prostrar-te-ás à frente do Senhor teu Deus e a Ele só tu servirás”. 11 Então o diabo deixa-o. E eis que vieram anjos e serviam-no.

(Tradução de Frederico Lourenço)

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Também para nós a vida é prova e tentação. Oportunidade constante de ser fiel ao Senhor. É momento de avaliação da nossa relação com Deus mesmo em contexto de extrema dificuldade. Mesmo quando Deus não parece estar presente nem pronto a encher-nos do seu Amor. As tentações têm como alvo as três relações fundamentais do ser humano: com as coisas, com as pessoas e com Deus. É a possibilidade de garantir a satisfação mediante o poder mais do que com o dom. Há sempre uma tentativa de nos apoderarmos do dom. Jesus foi submetido a esta prova, mas não cedeu. Nunca recusou fazer a vontade do Pai, mesmo que Lhe custasse. E isto porque nunca duvidou do seu Amor, da sua fidelidade, nem mesmo da cruz. Nós cedemos a esta tentação sempre que exigimos de Deus sinais do seu amor. Jesus escolheu ser servo, deixando-nos o convite a sermos diferentes e mais autênticos: escutando a Palavra, Deus revela-Se e a relação com Deus dignifica e engrandece a pessoa; esta sente-se amada e sente que pode amar. A escolha de Jesus deve ser também a nossa. O seu testemunho é para nós caminho de libertação. Somos seres livres porque salvos pelo amor, pela fidelidade a uma missão e à realização de um projeto.


2.º Domingo da Quaresma

Descobre-te como filho e acolhe o Amor do Pai

Acolhe a graça da tua filiação divina.

Pelo Batismo, és revestido de Cristo.

(Mateus 17, 1-9) Transfiguração de Jesus como protótipo do nosso destino pascal de transformação e vida. Perspetiva-se o Batismo, sacramento da fé e da filiação divina.

1 Seis dias depois, Jesus toma Pedro e Tiago e João (o irmão deste) e leva-os para uma alta montanha, para estarem sós. 2 E transfigurou-se diante deles e brilhou o rosto dele como o Sol e as suas roupas tornaram-se brancas como a luz. 3 E eis que lhes apareceu Moisés e Elias conversando com Jesus. 4 Pedro, respondendo, disse a Jesus: “Senhor, é bonito estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. 5 Ele ainda falava quando eis que uma nuvem luminosa os ensombrou; e eis que uma voz veio da nuvem, dizendo: “Este é o meu filho amado, no qual eu me agradei. Escutai-o”. 6 Ouvindo [isso], os discípulos caíram com o rosto no chão e apavoraram-se muito. 7 E Jesus aproximou-se e, tocando-lhes, disse: “Levantai-vos e não tenhais medo”. 8 Levantando eles os seus olhos, não viram mais ninguém a não ser apenas o próprio Jesus. 9 E descendo eles da montanha, Jesus deu-lhes ordens, dizendo: “Não conteis a ninguém o que vistes até que o Filho da Humanidade ressuscite dos mortos”.

(Tradução de Frederico Lourenço)

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Que expectativas tenho eu face a Jesus? Aceito este Jesus que me anuncia a sua morte e que me chama a segui-Lo, entregando-me? Ou faço um Jesus à minha medida, menos exigente? Deixo-me levar por Ele até ao monte de Deus para poder conhecê-Lo tal como é? Falar com Jesus tem três requisitos. Primeiro, devo dar espaço à escuta: antes de falar, devo escutar. Segundo, depois de falar com Ele, devo permitir a transfiguração: todo o encontro com Jesus converte-nos. Terceiro, depois de transfigurado, devo ser testemunha: não posso guardá-lo só para mim. Sabendo que Jesus é o Filho muito amado de Deus e que n’Ele reside a sua bondade, Deus insiste comigo em que devo escutar Jesus nas palavras que proferiu, nas obras que realizou, nos desejos que o consumia e nos sentimentos que experimentou, porque Jesus é aquele que encurta distâncias, se aproxima e me convida a conviver com Deus, estabelecendo uma relação de Pai e filho muito amado.