A igreja do Bom Jesus de Matosinhos

Erigida no século XVI, a mando da Universidade de Coimbra que desde 1542 possuía o padroado de “Sam Salvador de Bouças”, a actual igreja de Matosinhos veio substituir um velho e arruinado templo até aí existente, a algumas centenas de metros de distância, no lugar de Bouças – local onde, na Idade Média, existira um mosteiro.
A obra de construção do novo templo, renascentista, foi entregue, em 1559, a um célebre imaginário/arquitecto de então: João de Ruão. O prazo inicialmente previsto para a construção foi de quatro anos. Demorou vinte! E na fase final da edificação, entre 1576 e 1579, um outro famoso artista da época, Tomé Velho, juntou-se a João de Ruão.
Embora as dimensões da igreja não se tenham alterado significativamente, resta muito pouco desse templo inicial.
Na realidade, e à excepção das colunas que dividem interiormente as três naves, hoje não nos é possível observar muitos vestígios dessa primeira época. Com efeito a igreja foi profundamente alterada no século XVIII. Não só a capela-mor sofreu profundas alterações nas duas primeiras décadas daquele século, como todo o resto do corpo do edifício seria significativamente alterado, a partir de 1743, pelo arquitecto italiano Nicolau Nasoni que levantou significativamente as paredes laterais e produziu uma fachada barroca totalmente nova, de inegável impacto cénico. Ainda durante o século XVIII o interior da igreja foi coberto, de um modo significativo, por talha dourada ao gosto do barroco, abrigando algumas das melhores obras-primas dessa arte no nosso país.
A conclusão da obra foi celebrada com grandes festividades que duraram três dias, precedidas de uma grandiosa procissão com a imagem ao lugar do Espinheiro onde foram lançadas três bênçãos ao mar, regressando ao templo.
Este templo amplo, de três naves, é cercado de um vasto adro (recinto arborizado e gradeado) que o envolve e isola das áreas circundantes, dando-lhe assim um ar de recolhimento e de acolhimento para a entrada na esfera do sagrado. Neste adro estão construídas seis capelas, todas elas ligadas aos acontecimentos da Paixão de Jesus Cristo. Cada uma delas representa uma cena com figuras humanas em tamanho natural: A Agonia no Horto, A Prisão de Jesus, A Flagelação, O Pretório, O Ecce Homo e Jesus caído sob o peso da Cruz.
Está classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1982.

A Imagem do Bom Jesus de Matosinhos

Embora tipologicamente seja possível enquadrar esta escultura na transição do românico para o gótico, e datá-la entre os últimos anos do século XII e os primeiros do XIV, a origem lendária deste crucifixo está, no entanto, profundamente enraizada na comunidade e na tradição popular. Segundo esta, o autor da imagem é Nicodemos, personagem bíblica que, com a ajuda de José de Arimateia, retirou Cristo da cruz e o depositou no sepulcro. Impressionado com os acontecimentos que testemunhara, e porque era bastante dotado para o trabalho em madeira, Nicodemos resolve esculpir diversas imagens de Cristo crucificado, sendo auxiliado nesse seu trabalho pela circunstância de possuir o santo sudário – o tecido que, por ter envolvido o ensanguentado corpo de Cristo, reproduzia fielmente a imagem e as feições de Jesus.
Estas esculturas não permanecerão, contudo, muito tempo na sua posse. Sendo comprometedores indícios face às perseguições de que os cristãos são vítimas por parte dos judeus e romanos, Nicodemos lança as suas imagens às águas do Mediterrâneo.
A mais bela e perfeita de todas, a que melhor reproduzia a face de Cristo – por sinal a primeira que havia sido esculpida – depois de cruzado o estreito de Gibraltar e sulcado o Atlântico junto às costas portuguesas, acabou por ser depositada pelas águas na praia do Espinheiro, junto ao lugar de Matosinhos. Estávamos, ainda segundo a lenda, no dia 3 de Maio do ano 124.
Recolhida a imagem na praia pela população, constatou-se, contudo, que lhe faltava um dos braços. No local não se encontrou o membro em falta e, por muitos braços que se tenham mandado fazer aos melhores artífices, nenhum encaixava de forma perfeita no ombro amputado. E assim, resignados, deixam ficar a imagem resguardada no Mosteiro de Bouças, localizado não muito longe do local do seu aparecimento.
Cinquenta anos depois, na praia, uma pobre mulher recolhe lenha. De regresso a casa observa, estupefacta, que um grande pedaço de madeira teima em, milagrosamente, saltar do fogo sempre que para ele era lançado. Milagre reforçado por ter sido uma jovem filha a indicar à mãe que a lenha em questão era o membro ausente na imagem do Senhor guardado no Mosteiro de Bouças. Facto que em si não encerraria nada de especial não fosse a circunstância de, até aquele momento, a miúda ter sido surda-muda de nascença…
Rapidamente aplicado no crucifixo, de imediato se constatou estar em presença do braço até aí extraviado. Começava assim a veneração desta imagem que, desde muito cedo, fez rumar a Bouças e depois a Matosinhos (após a sua transferência no século XVI para a nova igreja), inúmeros peregrinos e romeiros fascinados com a fama crescente dos seus milagres que, desde então, não deixaram de se multiplicar.
Independentemente da lenda, a referência histórica e documental mais antiga, até agora conhecida, à imagem e à devoção que lhe está associada data de 1342.
Aquela que é, provavelmente, a mais antiga imagem existente em Portugal de um Cristo crucificado, em madeira e em tamanho natural, datará de um período compreendido entre os finais do século XII e os inícios do XIV, na transição do românico para o gótico.
Embora apresente muitas características “arcaicas” e românicas (fraco realismo anatómico do corpo, posição rígida ao longo da cruz, preocupações pudicas dos panos da pureza que quase ocultam todo o corpo abaixo da cintura, mãos que não se crispam com dor…), o rosto, de maior cuidado artístico e expressando dor, aproximam-no mais do espírito e tradição góticas. A posição dos seus olhos (“O Senhor de Matosinhos é vesgo” – afirma a tradição popular) insere-se igualmente neste espírito, uma vez que nos encontramos perante um Cristo mediador que olha simultaneamente para o Pai e para os Homens. A longa cabeleira, a coroa de espinhos em prata e o rico resplendor são adereços introduzidos na imagem no século XVIII, bem ao gosto do barroco.
A Festa ao Senhor de Matosinhos celebra-se na terça-feira seguinte ao domingo do Espírito Santo (ou de Pentecostes), data móvel do calendário que ocorre sete semanas depois da Páscoa.

A devoção ao longo dos tempos

a) No Passado

A devoção ao Bom Jesus de Matosinhos estendeu-se a quase todo o país, mas teve raízes mais profundas no norte de Portugal.
Sobretudo o povo simples e pobre, designadamente os pescadores e gente ligada às fainas do mar, invocava o Bom Jesus e fazia-Lhe as suas promessas. Algumas destas promessas consistiam em fazer determinado percurso dentro ou fora do templo (no adro) em atitude penitencial, geralmente de joelhos; outras eram menos custosas, como eram as ofertas de velas e figuras de cera de diversos órgãos da anatomia humana e até de pessoas.
Os armadores marítimos da cidade do Porto, quando os seus navios partiam para longas viagens pagavam tributo ao Bom Jesus de Matosinhos, para os proteger. Os marítimos de várias zonas do litoral norte do país faziam romagens ao templo levando as velas das suas embarcações que tinham prometido ao Bom Jesus em horas de eminente tragédia e de perigo para as suas vidas com o naufrágio a cercá-los. Estes mesmos marítimos, outras vezes ofereciam miniaturas dos seus barcos nos quais tinham sido salvos com o auxílio do Senhor. Todas estas ofertas tinham uma única finalidade: agradecer as graças que o Senhor lhes tinha concedido.
Entre as gentes do interior, mais ligadas à agricultura, não era menor a devoção. Para agradecer os favores ou «milagres» feitos, ofereciam ao Senhor figuras de cera representando diversos animais ligados à agropecuária, salvos de doença ou de pestes. Igualmente traziam grandes círios e, muitas vezes, até os cabelos das mulheres, também para agradecer «milagres». Do mesmo modo se ofereciam grandes quantidades de azeite para alumiar de noite e de dia a lâmpada do Bom Jesus.
Pessoas de classes com mais possibilidades económicas ofereciam alfaias litúrgicas e decorativas de prata e outros materiais valiosos e nobres, sempre como acção de graças.
Esta devoção ultrapassa a dimensão individual e atinge dimensões colectivas, porque, poderemos dizer, todo o povo desta área de Matosinhos, Porto, Gaia e Maia encarnou esta devoção ao Senhor de Matosinhos. A comprová-lo estão as preces públicas e as procissões realizadas em ocasiões difíceis para as populações, para a comunidade humana, com a intenção de pedir «milagres».
Assim, em «Junho do ano de 1526, por ocasião de um largo período de tempestades que destruíram as colheitas e desvastavam os haveres dos pobres, semeando a fome, foi a imagem levada em procissão de Matosinhos à cidade do Porto, sendo, assim, causa de bonança pois serenaram-se os ares» (Cerqueira Pinto, António, in obra supra citada, págs. 169-170).
Em sete de Junho de 1585, também por causa de tempestades e chuvas torrenciais, fez-se outra procissão à cidade do Porto. Em 1596, o motivo e o resultado foram os mesmos. Em 1644, no dia 20 de Junho, a imagem foi de novo à «cidade da Virgem» (assim é conhecida a cidade do Porto), mas agora a pedido do Senado do Porto que solicitou à irmandade do Bom Jesus auxílio para a calamidade pública que afectara a cidade. Nesta procissão ter-se-ão incorporado cerca de quarenta mil pessoas. Eis a crónica do milagre que teve lugar depois da celebração da Missa na Sé Catedral do Porto, neste dia: «Terminada a Missa cessó el dilúvio tuvo fin el agoa y se removió toda la tempestade de todos los malos temporales y lo rigoroso del tiempo, quedando tam fixo y de tanta bonança que admiro a los mesmos prasaentes tam repentino caso; enfim, obra deste Diviníssimo Senhor» (Manuel Pereira de Novais (monge beneditino), in «Anacrisis Historial, 1915, vol. IV).
Em 1696, foi novamente a imagem ao Porto para debelar uma epidemia que dizimava a população da cidade, os hospitais cheios e os cemitérios incapazes de suportar tantos corpos, atribuindo-se o fim da calamidade ao Bom Jesus de Matosinhos.
Em 1733, a procissão teve como objectivo dar um ar solene às obras importantes que tinham acabado de ser realizadas na igreja. A procissão saiu, tendo atravessado a Ponte de Pedra em direcção a Leça da Palmeira e regressado por uma de madeira, sobre barcos, construída para o efeito. Daí, dirigiu-se à Praia do Espinheiro, onde foram lançadas três bênçãos: uma sobre o mar, outra na direcção do Porto e a última ao povo de Matosinhos. Durante a cerimónia houve quem tivesse presenciado dois milagres: num deles, os peixes, no mar em frente, saltavam de alegria sobre as ondas da praia; no outro, o Sol teria parado durante bastante tempo e o dia ter-se-ia prolongado muito para além do que é normal. Depois das bênçãos a imagem regressou à igreja (António Cerqueira Pinto, 1737, in História da Prodigiosa Imagem de Cristo Crucificado …).
Em Junho de 1944, a imagem saiu à rua para agradecer a Deus o fim da Segunda Grande Guerra. Em 1967, saiu pela última vez, para celebrar o Cinquentenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima e pedir a paz no mundo.
Um dos mais característicos votos de gratidão com que os gregos agradeciam ao deus curador Euculápio, ou a outros deuses, a graça das curas, era a tábua votiva, uma pequena placa de barro cozido onde se indicava a doença de que padecera o ofertante ou o seu parente. Este uso estava ligado com a medicina grega que geralmente era exercida no templo pelos médicos-sacerdotes.
O culto católico conservou esse hábito pagão oferecendo tábuas votivas ou ex-votos aos Santos, à Virgem ou a Cristo que miraculosamente os protegeram. Eram oferecidos por ocasião de doenças mortais, guerras ou naufrágios, cativeiros e outras situações-limite.
É de várias dezenas a colecção de ex-votos oferecidos ao Bom Jesus de Matosinhos, narrando os «milagres» feitos aos suplicantes.
São tábuas de pequeno valor artístico e geralmente oriundas de gente simples.

b) A Confraria do Bom Jesus de Matosinhos

Em 1607 foi criada a Confraria do Bom Jesus de Matosinhos e foi erecta canonicamente. Esta Confraria teve em vista a caridade e assistência aos mais necessitados da população de Matosinhos. Para conseguir este objectivo, construiu um Hospital, um Asilo para recolha, sustento e educação de órfãs pobres, duas escolas de ensino primário e, actualmente um Complexo Assistencial para terceira idade e infância, entre outros.
A devoção Senhor de Matosinhos propagou-se para além das fronteiras de Portugal e estendeu-se até ao Brasil, levada por emigrantes e marinheiros. Na cidade de Congonhas – Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, no Brasil foi edificado um templo – santuário – dedicado ao Bom Jesus de Matosinhos, cujo culto foi levado para ali em 1757 por um português devoto.
É neste santuário que se encontram as célebres estátuas dos profetas do escultor brasileiro António Francisco Lisboa, «O Aleijadinho».

c) A Festa

A Festa iniciou-se em 1732 com a inauguração das obras da Igreja Nova. Durou três dias e teve lugar na segunda oitava do Espírito Santo. Teve início no domingo e terminou na terça-feira, dia em que, segundo a tradição, apareceu a imagem.
Começou por ser essencialmente religiosa. Tudo se centrava no santuário. Fora da área do templo e do seu adro havia centros de diversões, barracas de venda de vinho e de comidas, doçarias e tudo o que é comum em arraiais. Hoje, os papéis inverteram-se e que era secundário, então, passou agora a ser o centro. Por observação directa, a festa religiosa e o culto nos dias de festa são apenas um apêndice a tudo o mais.
A organização da festa passou, desde há muitos anos a esta parte, das mãos da Confraria do Bom Jesus para a Câmara Municipal (Autarquia). Mesmo o título dado às festividades mudou: já não são oficialmente as Festas do Bom Jesus de Matosinhos, ou do Senhor de Matosinhos, mas «Festas de Matosinhos».
A festa tem a duração de quatro dias: sábado, domingo, segunda e terça-feira. Este último dia é feriado municipal.

d) O desenrolar dos actos

Preparação: Novena. Nove dias antes do primeiro dia das festas faz-se a novena que o povo chama de «Novena do Senhor de Matosinhos», mas que é de facto, a Novena do Espírito Santo, já que o domingo da festa é sempre o domingo da Solenidade litúrgica de Pentecostes. São dias em que o templo fica repleto de fiéis. A novena é rezada e cantada e muito participada pelo povo. Esta novena consiste na Oração de Laudes, seguida da celebração da Eucaristia com a liturgia própria do dia.

e) A decoração do Templo

No dia anterior ao primeiro dia (sábado) são decorados os altares laterais da igreja, que são seis, bem como o altar e capela-mor, com flores compradas com o produto quer de peditórios feitos porta-a-porta pelas zeladoras dos mesmos altares, quer pelas flores oferecidas, prática que hoje já quase não existe. Pode dizer-se que o templo fica belo a ponto de muita gente dizer: «a igreja parece um jardim, uma obra de arte».

d) As visitas ao Templo

Desde a tarde do dia de sábado, o templo fica aberto, mesmo de noite, durante algumas horas, para ser visitado quer pelos devotos, quer pelos curiosos e amantes de flores. De facto, durante os dias da festa formam-se filas de pessoas que entram só para ver o espectáculo das flores que se tornou, esse sim, um dos principais pontos de atracção de quem vai à festa.
Um jornal da cidade descreve assim o espectáculo: «o que ali atrai o povo tanto o culto como o inculto, sem dúvida, são os altares. Que lindeza surpreendente, que policromia de sonho e de encantamento. Cada qual na sua tonalidade – com flores salmonadas, vermelhas, brancas, amarelas, purpúreas, rajadas de encarnado e até azuis em alguns anos – os sete altares da igreja de Matosinhos, pela maneira exuberante e artística como se apresentam enflorescidos, são dignos da admiração e dos encómios do povo devoto que ali acorre em dias de festa em número assaz elevado tornando-se por vezes difícil o acesso ao interior do espaçoso templo» (in “O Comércio de Leixões” de 05.06.1981, pág. 11).

e) A «Missa de Festa»

Na manhã de terça-feira, dia feriado municipal, celebra-se a Missa do Senhor de Matosinhos. Para assegurar lugar no interior do templo, as pessoas deslocam-se com algumas horas de antecedência de todas as paróquias da Vigararia e não só! Essa Missa, quase sempre presidida por um bispo e concelebrada pelos párocos da Vigararia, e de uma grande solenidade.